quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Latido (por Miguel Troncão)

pai Nosso, onde quer que estejas, santificado seja o Nosso nome,
seja feita a Nossa vontade na terra, que quem está no céu já não quer saber.
começa assim a nova boa nova, o evangelho segundo os melhores e os piores da minha
        geração, e os que não têm geração, e quem mais se quiser juntar,
LAUDEM, LATEM, LUTEM!

nasceram os Cristos,
filhos da Porteira a quem foi fechada a porta, lá a limpa ainda para quem lha
        fechou,
da Doméstica que cozinha sem ter que comer, dobrada na sua fome, esquece a
        angústia que tem,
da Reformada que escolhe entre a renda e a farmácia, só se descobre o corpo
        morto quando o senhorio reclama a renda,
da Desempregada a quem dizem que andou a viver acima das suas possibilidades,
        quando do que ela tem medo é de viver debaixo da ponte,
da Mendiga, de lata na mão, que dorme ali no S. Jorge mas teima em não ir ao cinema,
        há de sempre haver quem tenha má vontade,
da Revolucionária, que de punho erguido grita LIBERDADE, a do povo que é
        oprimido, e a dela que é levada pelos braços comprados da justiça cega,
da Puta que se vende porque tem de ser e da que quer ser, sendo Puta.

mas onde está a virgem?
essa maria pura casta irreal,
não anda de certeza pelas ruas desoladas iguais a quem por elas anda, onde o grito do
        vagabundo se confunde com o latido do seu fiel companheiro,
pelos mercados a tentar fazer o melhor negócio para alimentar a pobreza,
        leviatã de boca escancarada a engordar da barriga vazia,
pelos autocarros às sete da manhã a lutar por um lugar, os únicos quinze minutos em que
        pode fechar os olhos e esquecer o filho que não conseguiu tomar o pequeno-almoço,
pelas tascas a ouvir o fado vadio enquanto bebe uma água ardente, para aquecer o corpo e a
        alma.
a virgem, essa tem um trabalho das nove às cinco, secretária de mogno,
        aquecimento central, salada pré-feita para o almoço, buscar os miúdos às seis,
        jantar, passear o cão, tão bem comportado, nem late, vejam só,
        telenovela, chichi e caminha.

anunciem os Cristos, a nova raça de homens e mulheres e trans e bichas e quem não quer
        ser nada,
raça mundana e da terra, como se quer,
a suar sobre os fornos de uma qualquer cadeia de fast-food, sem perspectivas de
        futuro que não seja o de não quebrar sob o peso da inutilidade, não a deles,
        mas da vida,
ou então, Bom dia, quer aderir ao novo pacote, repetido, repetido, repetido, repetido,
        repetido, repetido, decadência em cadência,
        Bom dia, estamos a fazer uma oferta especial, desliga e volta a ligar,
a levar todos os dias com a santíssima trindade, pai, filho & empreendedorismo Lda,
        o falso profeta, que já não precisa vir vestido com pele de ovelha,
        andar de lobo está na moda,
        Ao menos tens emprego, diz o ilustríssimo empreendedor
        O problema é que as pessoas não querem trabalhar, queixa-se o
        sapientíssimo economista,
        Queremos alguém com completa e total disponibilidade para trabalhar a qualquer hora
        sem nenhuma remuneração, oferece generosamente o empregador,
        já nem para os mandar foder há forças,
rafeiros treinados para o abate,
seres criados para a destruição,
carvão numa fornalha que nunca se extingue,
com Eles arde o mundo, Eles são o mundo,
o problema é que o mundo arde mas o fósforo não se queima.
cão que ladra tem que aprender a morder a mão que finge que o alimenta,
        lamber-lhe os dedos não faz nada.

pelos Cristos, com os Cristos, nos Cristos,
agora e para sempre,

Amen.


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